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guarda que nos trazia comsigo (1), o qual por ser homem rico e honrado, vinham com elle tres dos mais principaes, convidados para a cea, os quaes depois de terem ceado, vieram a praticar no mau sucesso do dia de antes, e de como o Mitaquer (que assim se chamava o Nauticor) andava por isso assaz agastado. E acertando um d'estes, que estava na pratica, de olhar para nós, por estar mais chegado á prisão onde nós estavamos, viu que intendiamos o que elles falavam (2), e nos perguntou que gente eramos e como se chamava a nossa terra, e de que maneira nos cativaram os chins, ás quaes perguntas respondemos conforme a verdade do que se podia dizer, de que elle fez algum caso, e discorrendo mais pela pratica, nos perguntou se pelejavamos, e se era o nosso rei inclinado á guerque um dos nossos, por nome Jorge Mendes, respondeu que sim, por que todos eramos creados n'ella e exercitados de muito pequenos. Da qual resposta o tartaro se satisfez tanto, que chamando os seus dous companheiros, lhes disse: «vinde ouvir estes presos, por que me parecem homens em que cabe razão.»>

ra,

Os outros dois se chegaram logo, e nos estiveram ouvindo algumas cousas que lhe contámos de nós, acerca do infortunio da nossa prisão. E não cessando elles de nos fazerem perguntas, a que nós respondemos o melhor que soubemos, um d'elles, que se mostrava mais curioso, disse, ao Jorge Mendes, que era o que falava com elles:- «s algum de vós outros, pelo muito que dizeis que tendes visto do mundo, intendesse, ou soubesse algum ardil, com que o Mitaquer, Nauticor de Lançame pudesse tomar este castello, eu vos afirmo que em vez de serdes vós seus cativos, o será elle vosso»; a que o Jorge Mendes, inconsi

(1) Não nos refere Fernão Mendes, por que modo foram salvos da conflagração de Quansi, ficando todos juntos, ao que parece sem sofrerem qualquer ferimento, o que mostra que a destruição da cidade não foi tão completa como dz, e que deviam ter escapado muitos outros habitant s, que se refugiariam ou ficariam cativos, como os nove portuguêses.

(2) Tambem não se compreende bem, como podiam os portuguêses intender a linguagem dos tartaros, a não ser que o Jorge Mendes, que era o que com elles falou, tivesse tido anteriormente, por qualquer circumstancia, alguma pratica com elles.

deradamente, e sem intender o que falava, nem o em que se metia, respondeu: «Se o Senhor Mitaquer, Nauticor de Lançame nos der um assinado seu, em nome d'el-rei, de nos mandar pôr seguros nas aguas do mar da ilha de Ainão, d'onde nos possâmos ir livremente para nossa terra, quiça que lhe farei eu tomar o castello com muito pouco trabalho.>>

Um dos tartaros que alli estavam, homem velho, e no parecer grave e de autoridade, do qual se dizia que era muito aceito ao Mitaquer, lhe respondeu alvoroçado: «Vê bem o que dizes, por que, te afirmo, que se isso fizeres, te será logo concedido quanto pedires, e muito mais ainda do que pódes pedir.>>

Nós então vendo o em que o Jorge Mendes se queria meter, e da maneira que se penhorava no que prometia, e que os tartaros lançavam mão d'isso, o repreendemos todos, dizendo, que se não metesse em cousa que nos désse trabalho, e nos puzesse em risco de perder-mos as vidas, a que elle respondeu, algum tanto agastado:<«<bofé, senhores, quanto à minha eu a estimo agora tão pouco, que se algum destes barbaros ma quizesse jogar á primeira, vos certifico que com quaesquer duas sotas a metesse logo no primeiro envite, por que bem intendido está que não é esta a gente que nos ha-de dar a vida pelo resgate que pretende de nós, como fazem os mouros de Africa, e já que assim é, tanto monta hoje como amanhã. E lembre-vos o que lhe vistes fazer em Quansi, e por ahi julgareis, o que vos podem fazer a vós.>>

Os tartaros ficaram algum tanto espantados de nos verem altercar uns com os outros e falarmos alto, que é cousa que elles entre si não custumam, e nos repreenderam com boas palavras, dizendo, que mais proprio era das mulheres falarem alto e desentoado, pois não tem freio na lingua, nem chave na boca, que de homens que cingem espadas. e tiram com frechas na furiosa tormenta da guerra, mas se o Jorge Mendes puzesse em efeito o que tinha dito, o Mitaquer lhe concederia tudo quanto lhe pedisse. E com isto se despediram uns dos outros, e se recolheu cada um á sua estancia, por serem já quasi as onze

horas da noite, em que o quarto da prima se acabára de render, e os capitães da guarda roldavam o campo ao som dos seus instrumentos, como custumam em similhantes tempos.

CAPITULO CXIX

Do ardil que Jorge Mendes deu para se tomar o castello, e do assalto que se lhe deu e do sucesso d'elles

Aquelle dos tres capitães tartaros de que atrás fica dito, que era muito aceito ao Mitaquer, general d'aquelle campo, lhe foi logo dar conta do que passára com Jorge Mendes, e lhe fez d'isso muito maior caso do que a cousa em si era, e lhe disse que o devia de mandar chamar, e ouvi-lo, por que quiçá lhe satisfariam suas razões de tal maneira, que lançaria mão por ellas, e que quando' The não parecessem bem, que pouco se perdia n'isso; e o Mitaquer lhe pareceu bom aquelle conselho, e mandou logo recado ao Tileimai, que era o capitão que nos tinha a seu cargo, que nos levasse lá, e elle o fez logo com muita presteza.

Chegando nós assim presos, como estavamos, á tenda do Mitaquer, o achámos em conselho com todos os setenta capitães do campo, e seria ja quasi ás duas horas depois da meia noite, elle nos fez gasalhado com semblante afavel, porem grave e severo, e, fazendo-nos chegar para junto de si, nos mandou logo tirar parte das cadeias, em que de tres em tres vinhamos presos, e nos perguntou se queriamos comer, a que nós respondemos que sim, por que havia ja tres dias que no-lo não davam, o que elle estranhou muito ao Tileimai, e o repreendeu com algumas palavras, e logo alli nos mandou trazer dois pratos grandes de arroz cosido e adens de chacina cruas em talhadinhas, com que nós, como necessitados, nos metemos de tal maneira, que todos os circumstantes parece que mostravam gosto de nos verem comer, e disseram para o Mitaquer:-«inda, nhor, que os não mandáras vir ante ti, para mais que para The matares a fome, por não morrerem á mingua, como

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parece que houvera de ser, não fizeste tão pouco, que não fosse ganhares esses nove escravos, que, para te servirem em Lançame, te hão-de ser muito bons, e quiça que tambem para os venderes por mais de mil taeis.» Do qual dito, uns e outros, estiveram entre si gracejando um grande espaço, e tornando de novo a nos mandar trazer mais arroz e feijões cosidos com beringelas, nos rogou que comessemos, por que folgava muito de no-lo ver fazer; o qual gosto lhe nós então démos de muito boa vontade.

Depois que tivemos comido, tratou com o Jorge Mendes, pela informação que lhe tinham dado, do modo que se teria no tomar do castello, e lhe fez muitas promessas de grandes honras e rendas e valia com el-rei, ou liberdade para todos nove, com outras muitas vantagens, de que nos encheu bem as medidas, por que lhe afirmava que, se por seu meio lhe deus desse aquella victoria, com que elle tomasse vingança de seus inimigos, como desejava, e o sangue dos mortos estava pedindo, que elle o fizesse em tudo quanto pedisse similhante a si, ou, ao menos, a qualquer de seus filhos, de que o Jorge Mendes ficou um pouco embaraçado, por que nunca lhe pareceu que a cousa chegasse a tanto, e lhe respondeu, «que d'aquelle caso elle não dissera mais aquelle homem, se não que por ventura diria como se tomasse o castello, se o visse por seus olhos, mas que, como fosse manhã, elle o rodearia todo e o veria muito bem, e então lhe diria o modo que para isso se poderia ter»; da qual resposta (1), o Mitaquer com todos os mais, ficaram muito satisfeitos, e lha louvaram muito.

Então nos mandaram agasalhar em outra tenda, junto d'esta em que elle estava, onde passamos o que restava da noite, com boa guarda, que se teve sobre nós, e deus sabe quão atemorizados, por que bem sabiamos que se a coisa não sucedesse como elles desejavam, nos haviam de fazer a todos em quartos, por que a coisa de que fazem menos caso, é de matarem vinte e trinta homens por valia de quasi nada, sem terem respeito a deus, nem á humanidade.

(1) Fernão Mendes, bem como os seus contemporaneos, escreve- reposta.

Ao outro dia, sendo ja passadas as nove horas, o Jorge Mendes e outros dois de nós, que lhe deram licença que levasse comsigo, foram levados por trinta de cavallo a ver o castello, e depois de bem vista a fortaleza e o sitio d'elle, e o por onde e como se poderia tomar, o tornaram a levar ao Mitaquer, que, com grande alvoroço o estava esperando; ao qual elle deu relação do que vira, e lhe facilitou a tomada do castello, sem nenhum trabalho e com pouco risco, de que o Mitaquer ficou tão contente, que não cabia (em si) de prazer.

E mandando-nos logo tirar a todos nove a parte das prisões que ainda tinhamos, que eram as ferropeas dos pés e as cadeas dos pescoços, nos jurou, pelo arroz que comia, de, tanto que chegasse ao Pequim, nos apresentar a el-rei, e cumprir quanto nos tinha prometido, sem falta nenhuma, e de nos passar logo d'issó um formão (1) assinado com letras de ouro, por que pudessemos descançar na verdade da sua palavra. E, mandando-nos vir de comer, nos mandou assentar junto de si, e nos fez outras muitas honras, ao seu costume, de que algum tanto ficámos satisfeitos, mas bem arreceosos dos desastres da fortuna, se, por nossos pecados, o negocio não sucedesse conforme á esperança que o Mitaquer já tinha concebida.

Logo n'aquelle mesmo dia se tomou conclusão, com todos os capitães, sobre a ordem que se havia de ter no acometer do castello, de que o Jorge Mendes dava a traça, e era mestre do campo, por quem tudo se governava; e se cortou infinidade de fachina para se entulhar a cava, e se fizeram mais de trezentas escadas muito fortes e largas em que bem podiam caber tres homens emparelhados, e ajuntou-se mais uma grande soma de cestos e enchadas que se acharam pelas casas das povoações despejadas, e a maior parte da gente andou todo este dia ocupada em ajuntar estas achegas, necessarias para o dia seguinte, em que se havia de dar o assalto, e sempre o Jorge Mendes andou a cavallo junto com o Mitaquer e muito favorecido

(1) Assim escreviam, em geral, os nossos a palavra - firman.

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